sexta-feira, agosto 20, 2010

[Conto] Mata ela, filhinho!

Depois que passou a viver naquela casa sua vida mudou drasticamente. Para melhor, para muito melhor. Ela havia passado grande parte de sua vida zanzando por lugares fedegosos, escuros e perigosos. A tranquilidade que aquele local lhe trazia era reconfortante. Até mesmo o desdém quase total das pessoas que ali moravam não lhe incomodava. Ficaria mais feliz se tivesse um pouco mais de atenção, de carinho. Mas aí seria exigir demais, o simples fato de ter encontrado aquela porta aberta no momento que mais precisava já era motivo para gratulação eterna.

De todos que lá moravam, a pessoa que mais lhe gerava simpatia era aquele garotão lindo, brincalhão e sorridente. Era, afinal, o único que não a menosprezava, que às vezes brincava um pouco, conversava. Devia ter seus três anos, no máximo. Já a garota (uns doze anos) e o casal de adultos mal notavam sua presença. Melhor assim.

Seu cotidiano era, não raramente, enfadonho e melancólico. Tinha seu cantinho onde podia descansar com relativa tranquilidade. Acordava cedo para aproveitar o período em que todos ainda dormiam. Andava pela casa toda, menos nos quartos. Nesses momentos sentia-se mais livre, como se fosse realmente um membro daquela família. Ficava mais tempo na cozinha, onde deliciava-se com doces. Como adorava doces! Café também lhe agradava. Bolos então, que delícia! Com o sol oferecendo seus primeiros raios luminosos, ela já não tinha tanta liberdade.

O homem era o primeiro a acordar. Fazia barulhos estranhos no banheiro, sem se preocupar se incomodava os outros ou não. Soava o nariz, tossia, acionava a descarga do vaso sanitário várias vezes. Ia até a cozinha, bebia um copo de água e começava a fazer o café. Como de costume, nem notava sua presença. Terminado o café trancava-se novamente no banheiro para tomar banho. Era mais uma oportunidade para ela deliciar-se com um cafezinho fresco, feito na hora. Antes mesmo do homem terminar o banho, sua mulher também acordava, ia direto para a cozinha, onde xingava baixinho o marido por ter deixado as coisas do café todas sujas e fora do lugar. A garotona também não tardava a deixar sua cama, pois estudava de manhã. Como ela ficava linda com aquela sainha plissada do uniforme. Já o menino acordava cada dia em um horário diferente, tirando proveito da idade onde as responsabilidades não vão além de um mero pedido de benção antes de dormir.

Durante a maior parte do dia ficavam na casa apenas ela, a mulher e o garoto. O pai saía cedo e voltava tarde. A garota voltava na hora do almoço, comia alguma coisa e se trancava no quarto. Dessa forma, sua companhia resumia-se à encontros breves e fortuitos com o molequinho com cara de levado. Tinha que tomar muito cuidado, os movimentos desajeitados dele eram sem dúvida um risco para um ser tão frágil e desconjuntadiço como ela. Mesmo assim, gostava quando ele ficava perto, mexendo aqueles dedinhos gordos.

Tudo ia muito bem até aquela fatídica terça-feira. As últimas palavras que ela ouviu foram: “Mamãe, tem uma formiga aqui”. “Mata ela filhinho!”.

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