quinta-feira, agosto 26, 2010

[Conto] Dor de dente

Dor pior que a de dente apenas a de parto. Não sei se é verdade e não quero saber, mesmo porque se algum dia eu fosse ter um filho, seria por cesariana. Naquele domingo à noite atingi o limite da dor suportável e liguei para meu dentista, consciente de que ele não ficaria nem um pouco satisfeito com a ligação, principalmente se estivesse saboreando uma pizza de quatro queijos naquele momento. Não atendeu. O que fazer então? Telefonei para alguns amigos, na vã esperança de que dessem fim, de alguma forma, ao meu martírio. Um deles, talvez o que eu tivesse menos esperança que pudesse ajudar, disse:

- Conheço uma dentista que atende casos iguais ao seu, de emergência. Minha mãe já precisou. Peraí, vou te passar o número.

Aguardei até que ele retornasse, já com papel e caneta preparados. Coitado, mal ele pronunciou o último dígito eu já havia desligado. Não aguentava mais aquele suplício. Nem havia passado pela minha cabeça que a dentista não atenderia, que não daria certo. Estava confiante até o sexto toque ... Já ia desligar quando ouvi:

- Doutora Elza, boa noite.
- Boa noite, Doutora Elza. Estou com uma dor de dente inenarrável, peguei seu contato com um amigo, gostaria de saber se pode me atender agora.
- É claro, menino. Pode vir imediatamente, estarei lhe esperando. Anote o endereço.

No mesmo papel usado para anotar o número do telefone lá estava agora o endereço da minha salvação. Peguei a chave do carro e saí em disparada, com o objetivo claro de percorrer aqueles dez quilômetros em menos de cinco minutos.

O local era agradável, moderno e bem limpo. Toquei a campainha e Doutora Elza apareceu rapidamente, com seu jeito bonachão e simpático. Entrei. Mal podia esperar a hora de ouvir o barulho do motorzinho dando início ao fim da minha dor. Sentei-me na cadeira, Doutora Elza percebendo meu martírio fez algumas perguntas rápidas sobre o local da dor e já iniciou os procedimentos. Eu lá, com a bocona aberta a ponto de doer meus maxilares e Doutora Elza começou a conversar comigo, tentando transformar um monólogo em um diálogo quase impossível. Todo mundo já passou por esse tipo de situação, de estar com um dentista que acha que você vai conseguir responder às perguntas que lhe faz estando com a boca aberta, duas mãos e um motorzinho dentro. Mas Doutora Elza era a pior de todas que eu conhecia. Perguntou meu nome completo, minha idade, se era casado, se tinha filhos, no que eu trabalhava, se tinha cachorro ...

- Mas me conta, meu filho ... Você, tão bonito assim, ainda solteiro?
- Ãã!
- Que coisa, né? Hoje em dia não está fácil conseguir uma mulher decente. Você não tem nem namorada?
- Ã..ãã!
- Ah, namorada você tem!
- Ã .. nãã!
- Agora entendi, não tem nem namorada. É, como eu estava dizendo, hoje em dia é mais fácil achar um homem decente do que uma mulher honesta, concorda comigo?
- Ãã!
- Pois é, esse mundo está perdido, meu filho. Mas você já namorou, né? Não é gay não, né?
- Ãã! Nããããããã!

Cada vez que eu tentava responder minha boca doía ainda mais. E por mais que eu tentasse mostrar minha afonia, ela repetia a pergunta até que eu, sem outra opção, emitisse algum som nasalado. Tal tormento prolongou-se durante longos trinta e cinco minutos, ao fim dos quais eu já sabia que ela era viúva, tinha três filhos, um deles vivendo no Canadá, pai de uma belezinha chamada Antonia. Mas nem me importei muito quando percebi que minha dor havia finalmente cessado. Tudo havia valido a pena e eu estava agradecido a Doutora Elza.

Sentei-me então à sua frente, diante daquela bonita mesa de madeira.

- Obrigado por me atender nesse horário, Doutora Elza. Quanto lhe devo?
- Duzentos reais.
- Duzentos reais? Sei que atendimentos realizados aos finais de semana e à noite são mais caros, mas duzentos reais?
- Ãã!
- Poxa, Doutora Elza, dá pelo menos para dividir em duas vezes para mim?
- Ã .. nãã!

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