quinta-feira, maio 13, 2010

[Conto] O Chifre

Casados há pouco mais de cinco anos, viviam em um apartamento de dois quartos de um bairro de classe média. Ele, trinta e seis anos recém completados, funcionário público desde os vinte, fazia o tipo intelectual. Ela, com vinte e cinco, parou de trabalhar assim que se casou e jamais se arrependeu por isso. O salário de auditor municipal era suficiente para uma vida confortável, mas sem direito a muitas regalias. Ele se julgava um homem de sorte por ter encontrado e se casado com uma mulher tão atraente. Ela, não raramente, exibia seus seios fartos em belos decotes, deixando-o orgulhoso. Apreciava também seu belo traseiro, não só ele, mas todos que a conheciam. Apesar de sentir-se bem sendo admirada e desejada, ela via a fidelidade como algo natural, que não lhe incomodava.

O ritmo de trabalho na repartição estava deixando-o cansado e estressado. Chegava tarde em casa, muitas vezes com pastas e mais pastas de papéis, motivo pelo qual avançava a madrugada trabalhando. Ela começou a reclamar de tal situação, mas entendia o esforço do marido. Como paciência tem limite, um dia brigaram feio. Ele acordou cedo e foi para o trabalho sem se despedir. No final do dia, resolveu dar uma esticada no boteco da esquina. Sentou-se e pediu uma dose de whisky, daqueles não muito caros, por favor. Bebeu uma, bebeu duas, três ... Adorava um scotch, mas ultimamente vinha exagerando na dose, ou melhor, nas doses. Chegou um homem e sentou-se ao seu lado. Percebeu que ele tinha uma aparência estranha. Nossa, o que era aquilo? O homem tinha dois chifres, bem em cima da testa. Eram pontudos e nada discretos. O curioso é que ninguém no bar havia reparado nessa peculiaridade, apenas ele. Sem nenhuma cerimônia, o homem começou a conversa explicando o motivo do chifre: estava trabalhando demais, sua mulher se cansou e arrumou outro. Achando tudo aquilo meio estranho, pagou sua conta e despedindo-se rapidamente, foi para casa.

Nunca havia visto um homem com chifre. Pelo menos não com chifre de verdade. No final do dia seguinte foi novamente ao bar, sentou-se na mesma mesa e começou a beber. Uma dose, duas doses, três doses ... Foi quando o mesmo homem sentou-se novamente ao seu lado e disse: "Está nascendo chifre em você também...". Ele levantou-se imediatamente, pagou a conta, entrou no carro. Bêbado, entrou tão rápido que bateu a cabeça. Doeu pacas. Passou a mão logo acima da testa. Olhou rapidamente no espelho retrovisor. O homem estava certo, lá estava o chifre. Ficou desesperado, transtornado. Chegando em casa, entrou correndo, não sem antes colocar um boné que carregava no porta-luvas do carro. Já no banheiro, ligou a luz, tirou o boné. Lá estava ele ... o chifre.

À partir daquele dia passou a ignorar a mulher. Não suportava a ideia da traição. Toda vez que ela lhe dirigia a palavra, recebia de volta murmúrios ininteligíveis. Não ficava mais sem boné ou chapéu, mesmo para dormir. Tirava apenas para tomar banho, mas deixou de lavar a cabeça. No trabalho virou motivo de chacota. Sempre desconfiado que alguém pudesse descobrir o seu segredo, deixou de participar das reuniões, e também do futebolzinho de quarta. Quando passava por qualquer porta, sempre se abaixava, apesar de seu risível metro e sessenta de altura. Voltou várias vezes ao boteco, como sempre bebendo uma, duas, três ou quatro doses de whisky, sempre reencontrando aquele homem misterioso.

Sem saber muito que fazer, a esposa resolveu interná-lo. Os médicos disseram ser algum surto, com remotas chances de reversão. Ele, obviamente, não gostou da ideia. Acabou aceitando, depois de emocionados apelos da mulher e dos amigos. Tinha tido tempo de avisar aquele homem sobre sua internação, que ficou até de visitá-lo, mas nunca apareceu. Sentiu falta do whisky, nos últimos meses ele vinha sendo seu melhor companheiro. Dia após dia o chifre ia sumindo, até que algumas semanas depois ele desapareceu por completo. Sentia-se bem melhor, estava animado, disposto, sem aquela ressaca costumeira dos últimos tempos. A esposa foi avisada para ir buscá-lo. Colocou um vestidinho acima do joelho, tecido bem fino, que destacava seu corpo escultural. Ficou na porta esperando. Ele veio, todo alegre e feliz por revê-la. Nem mesmo quando percebeu que os enfermeiros a olhavam com cobiça ele se alterou. Não acreditava mais que ela estivesse o traindo.

Alguns dias depois retornou ao trabalho, agora sem o chapéu. Parou de beber whisky, sentia-se muito melhor sem o álcool. Tudo voltara ao normal. Só uma coisa deixava-o inquieto. Queria reencontrar aquele homem para dizer que o chifre havia sumido. Falar que aquilo tudo devia ter sido coisa que ele mesmo colocou na cabeça. Passou várias vezes no mesmo bar, no mesmo horário. Pedia um suco de laranja com gelo e aguardava. Nunca voltou a ver aquele homem. Nunca mais voltou a ter chifre.

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