sexta-feira, setembro 18, 2009

[Conto] Entre jacarés e lagartixas

Aquela era mais uma empresa com traços inequívocos de administração familiar. Os donos haviam criado tudo há mais de 50 anos, partindo do zero, apenas com algumas economias conseguidas ao custo de muito suor. Mas tudo havia valido a pena, era uma empresa respeitada pelo mercado e até pelos concorrentes. Prezava a ética e a valorização dos funcionários. Depois da inauguração do prédio novo, há 3 anos, a satisfação de todos aumentou ainda mais. A grande maioria dos funcionários tinha no mínimo 5 anos de casa. Vários deles mais de 10, 15, 20 anos ... Essa experiência e lealdade eram, segundo os três irmãos que formavam o triunvirato administrativo, o segredo do sucesso. Mas os tempos eram outros, o mercado estava mudando. Clientes antigos passaram a comprar nos concorrentes em busca de alguns reais de desconto. A concorrência estava avançando. Multinacionais, de olho no crescente mercado brasileiro, surgiam como novos entrantes. O faturamento começou a cair e a luz amarela foi acesa.

Tinha chegado a hora de tomar decisões há anos adiadas. Os donos da empresa já mostravam claros sinais de cansaço, apesar de apresentarem ainda uma vitalidade espantosa. Não tinham tido instrução formal, mas de bobos não tinham nada. Perceberam que eram necessárias mudanças estruturais. Não havia espaço para vaidades. Entregaram a direção da empresa a um profissional altamente gabaritado, recrutado em uma das maiores e mais modernas empresas da região. Levaram-no a preço de ouro, foram convencidos de que não iriam se arrepender. Apesar da visível mostra de profissionalismo, esse desprendimento obviamente tinha limites. Deram liberdade ao novo presidente, mas o monitoravam de perto, participando de várias decisões. Isso ficou claro em um dos pedidos feitos ao novo gestor:

"Gostaríamos de manter os funcionários antigos. Confiamos muito neles e não temos motivos para demiti-los. Se achar necessário, estamos dispostos a gastar muito dinheiro com treinamentos, cursos de graduação e pós-graduação, MBAs, cursos técnicos ... Queremos fazer a empresa voltar a crescer, mas sempre junto com nossa equipe."

Aquele pedido não tinha nada de esdrúxulo ou sem sentido. O novo presidente concordou, tinha a certeza que, com a disponibilidade de grandes recursos, à médio prazo conseguiria profissionalizar as pessoas que ocupavam cargos de gerência e coordenação. Iniciou-se um processo constante de cursos in company. Palestrantes e professores das mais renomadas instituições de ensino e escola de negócios foram contratados. O clima interno nunca havia sido tão bom, os funcionários sentiam-se cada mais valorizados. Paralelamente a isso, o presidente deixou claro que era também necessária a injeção de DNA novo na empresa. A média de idade, apesar de não ser vista como empecilho, era alta. Precisavam mesclar profissionais jovens, altamente capacitados, de forma a criar uma sinergia positiva entre a experiência e a juventude. Novas ideias, gente motivada e disposta a mostrar serviço. Jovens altamente promissores, recrutados nas melhores universidades, foram contratados e alocados em todas as áreas da empresa. Para cada um deles foram designados mentores, selecionados entre aqueles que mais conheciam o negócio da empresa. Tudo estava indo conforme o planejado e conforme o combinado.

Meses se passaram. "Calma, ainda é cedo ...". "Precisamos dar tempo ao tempo ...". A verdade é que a empresa continuava perdendo espaço no mercado, os concorrentes avançando, as vendas caindo. "O que fizemos de errado? Gastamos uma fortuna com treinamentos, contratamos os melhores profissionais recém-formados, temos uma equipe comprometida e conhecedora de todas as suas tarefas. Tem que haver uma explicação!". Diante dos 3 donos, atrás daquela mesa imponente de madeira de lei, sentado naquela moderníssima cadeira importada, o presidente não tinha a explicação. Foi demitido. A situação era crítica, a desmotivação era geral. Os antigos funcionários tinham dado o melhor de si, os jovens promissores tinham seguido à risca os ensinamentos aprendidos nas seções de mentoring, tinham tentado colocar todo o seu aprendizado acadêmico à serviço da empresa. Mas não havia funcionado. Tinha que haver uma explicação. Um dos donos resolveu voltar à presidência, era necessário apagar o incêndio. Por indicação de um amigo, contratou uma consultoria renomadíssima, especializada em situações como aquela. Passaram-se semanas analisando tudo e a todos. Até que veio o veredito, proferido em tom imponente por aquele consultor, do alto de seus um metro e noventa de altura: "Quem nasceu para lagartixa nunca vai chegar a jacaré. Não há nada de errado com as lagartixas, mas se forem colocadas para nadar no fundo do rio, não conseguirão. Elas têm suas qualidades, não adianta pedir para um jacaré subir na parede, ele não conseguirá. A lagartixa consegue. Precisamos colocar as pessoas certas nos lugares certos".

Seguiram-se intermináveis segundos de silêncio total. "Como assim?", pensavam alguns, reticentes em serem os primeiros a demonstar que não tinham entendido nada. Mas a elucidação daquela metáfora veio em seguida: "Os funcionários antigos são excelentes, não há nada de errado com eles. Mas são lagartixas. Têm limitações, são importantes mas não serão eles que comandarão a empresa. Não são predadores. Temos jovens excepcionais, acima da média. Eles sim são os jacarés, mas estão frustrados, não lhe foram dada a chance de nadar, ficaram subordinados às lagartixas e se continuarem assim vão acabar definhando e se tornando uma delas. Precisamos fazer uma reformulação geral nas posições chave da empresa, e urgente".

O desafio que se seguiu foi fazer toda essa reestruturação sem melindres. Tanto a consultoria quanto os donos da empresa usaram de todo tipo de política disponível, conversas à dois, explicações, abriram o jogo totalmente, detalhando a situação da empresa, as medidas necessárias, envolveram a todos. Foi criado um plano de demissão voluntária. Ofereceram condições altamente atrativas para a aposentadoria daqueles que já estavam em condições para isso. Novas contratações foram necessárias. Muitos dos antigos funcionários voltaram para as tarefas em que eram bons, em que eram os melhores. Alguns jovens promissores assumiram posições de liderança. Os donos ainda mantiveram-se no comando durante alguns anos, até que um processo de sucessão fosse implementado e começasse a dar frutos. A empresa, repleta de jacarés e lagartixas, recuperou mercado, voltou a dar lucro.

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